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19 de Abril de 2024
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    Disputamos campeonato mundial de impunidade

    há 16 anos

    Fábio Wanderley Reis - Cientista Político

    O problema da corrupção é apenas parte do problema geral da política democrática. O desiderato envolvido é o de regras que se mostrem efetivas em assegurar tanto a autonomia dos cidadãos quanto a autonomia do Estado perante os interesses privados e sua eficiência como instrumento do interesse público, capaz de impor os necessários limites à conduta dos cidadãos.

    A dificuldade consiste em que esse Estado a um tempo autônomo e garantidor da autonomia dos cidadãos, que é ele mesmo o instrumento por excelência da vigência e aplicação das regras, não pode subsistir senão num contexto social propício. E o caráter propício do contexto ou substrato social envolve dois requisitos correlatos: um "estrutural", relativo à maior ou menor igualdade no acesso a bens materiais e intelectuais variados (o decisivo problema distributivo subjacente à dinâmica democrática, que pode ser visto como o problema "constitucional" em sentido sociologicamente denso); outro cultural ou de psicologia coletiva: as regras não serão eficientes se não forem a expressão de uma cultura democrática e dependerem da pura e simples imposição pelo Estado.

    Falar de mudanças quanto à dimensão estrutural ou de igualdade exige, por certo, perspectiva de longo prazo. Além disso, não há como escapar ao paradoxo de que, por hábeis que sejamos no trabalho "artificial" de elaboração de leis e normas, a mudança no plano da cultura tampouco ocorre num estalar de dedos: não cabe contar com uma espécie de "conversão" dos cidadãos, que passassem de súbito a orientar-se por "valores" nobres capazes de mitigar a aspereza do jogo dos interesses. A disposição adequada é antes aquela que, no inevitável artificialismo da elaboração legal, conte com a prevalência dos interesses e trate de condicionar as expectativas com relação a eles. Se imagino que serei punido por praticar certas ações, dados os dispositivos legais relevantes e a eficiência com que são postos em prática, meu cálculo de interesses se verá alterado. E um velho preceito sociológico ensina que expectativas que se reiteram e corroboram acabam por transformar-se em prescrições ou normas, justificando esperar que eventualmente se chegue a ter mudança cultural em sentido pleno.

    A ocorrência de corrupção está longe de ser exclusividade nossa, mas provavelmente disputamos o campeonato mundial quanto à impunidade. Isso se liga com um quadro cultural que é, sem dúvida, singularmente negativo: se, entre nós, autoridades e lideranças importantes não se pejam de estabelecer, de público, gradações em que condutas inequivocamente ilegais (o "caixa 2") são tratadas como destituídas de importância, temos também a revelação de pesquisas de alcance mundial, incluindo países de diferentes níveis de desenvolvimento e de tradições culturais e religiosas distintas, em que o Brasil surge reiteradamente como o caso de maior desconfiança interpessoal (com não mais de 3% dos brasileiros declarando que se pode, em geral, confiar nas pessoas, contra níveis de 65% ou acima nos países escandinavos, por exemplo).

    Quanto disso será peculiar do Brasil da atualidade, em contraste com o de um passado mais ou menos próximo ou remoto? Lembre-se, por exemplo, que o "mar de lama" de que temos falado a propósito de eventos recentes já era o foco dos acontecimentos que culminaram, em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas. De todo modo, é importante ponderar que, enquanto as denúncias do "mar de lama" daquele período se enquadravam no dramático enfrentamento entre direita e esquerda, ligando-se a longa e profunda turbulência em que a própria aparelhagem institucional acabou levada de cambulhada, agora, não obstante o experimento por que passamos do acesso de Lula e do PT à Presidência, o confronto governo-oposição não tem a antiga dramaticidade "marxista" e pode, bem ou mal, ter processamento institucional que termina por reforçar as instituições como tal.

    Mas o Brasil atual agrega um conjunto de circunstâncias negativas do ponto de vista do novelo de relações causais que envolve o problema geral. Naturalmente, a fragilidade das normas era um aspecto dos enfrentamentos distributivos em que se assentou nossa longa instabilidade político-institucional num panorama internacional de revolução e Guerra Fria. As mudanças no plano mundial ensejam avanços quanto a esse aspecto. Mas, no país urbanizado e impregnado de meios modernos de comunicação, em que se rompe a passividade de nossa secular sociedade escravista, a intensificação da criminalidade comum, a violência das chacinas e milícias e a difusão da insegurança dão feição nova e mais comezinha ("hobbesiana", em vez de "marxista") ao problema constitucional da construção de um Estado capaz de se fazer presente de forma apropriada e de encaminhar legal e institucionalmente a tensa convivência de interesses de todo tipo. E os "mares de lama" e as maracutaias de colarinho branco não são mais que uma face das deficiências do incompleto esforço de construção institucional e estatal.

    A eventual criação de uma sociedade genuinamente democrática, cívica e infensa à corrupção não poderá prescindir de que se superem, no nível "estrutural" e profundo, os fatores que preservam o legado de desigualdade e elitismo - bem como a fatal turbulência produzida no processo de superá-los. Mas, ao se atuar inevitavelmente nas limitações da conjuntura, não há razão para abrir mão de experimentar com os mecanismos institucional-legais e assim, quem sabe, alterar as expectativas. Entram aqui fatalmente os itens que têm sido objeto de discussão a propósito da reforma política: fidelidade partidária, cláusulas de barreira, adequada combinação de princípios majoritários e proporcionais, listas partidárias fechadas ou "flexíveis". E entra com especial destaque, do ponto de vista da corrupção, a experimentação com formas apropriadas de financiamento público da atividade política, seja qual for a dificuldade de encontrá-las e colocá-las em prática. Por um lado, ao contrário do direito de voto, o direito de ser votado está longe de ser assegurado igualitariamente, dada a enorme desigualdade no controle de recursos privados. Por outro, os recursos para o financiamento da atividade político-partidária, em geral, e das campanhas eleitorais, em particular, são o ponto crucial do jogo de compra e venda e da articulação escusa entre o público e o privado.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/disputamos-campeonato-mundial-de-impunidade/110010

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